terça-feira, 13 de agosto de 2024

O século em desassossego. subjetividade, alteridade, comunidade



Fernando Pessoa (1889 - 1935) e a impossibilidade do real

"Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha, consciências estranhas à minha consciência que, por ser consciência, me parece ser a única. Compreendo bem que o homem que está diante de mim, e me fala com palavras iguais às minhas, e me faz gestos que são como eu faço ou poderia fazer, seja de algum modo meu semelhante. O mesmo, porém não sucede com as gravuras que sonho das ilustrações, com as personagens que vejo dos romances, com as pessoas dramáticas que no palco passam através dos actores que as figuram. Ninguém, suponho, admite verdadeiramente a existência real de outra pessoa. Pode conceder que essa pessoa seja viva, que sinta e pense como ele; mas haverá sempre um elemento anónimo de diferença, uma desvantagem materializada. (...) Não me envergonho de sentir assim porque já vi que todos sentem assim. O que parece de desprezo entre homem e homem, de indiferente que nos permite que se mate gente sem que se sinta que se mata, como entre os assassinos, ou sem que se pense que se está matando, como entre os soldados, é que ninguém presta a devida atenção ao facto, parece abstruso, de que os outros são almas também. Em certos dias, em certas horas, trazidas até mim por não sei que brisa, abertas a mim por o abrir de não sei que porta, sinto de repente que o merceeiro da esquina é um ente espiritual, que o marçano, que neste momento se debruça à porta sobre o saco de batatas, é, verdadeiramente, uma alma capaz de sofrer. Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira. Coitado, também existia! Tínhamos esquecido isso, nós todos, nós todos que o conhecíamos do mesmo modo que todos que o não conheceram. Amanhã esquece-lo-e-mos melhor. Mas que havia alma, havia, para que se matasse. Paixões? Angústias? Sem dúvida... Mas a mim, como à humanidade inteira, há só memória de um sorriso parvo por cima de um casaco de mescla, sujo, e desigual nos ombros. É quanto me resta, a mim, de quem tanto sentiu que se matou de sentir, porque enfim, de outra coisa se não deve matar alguém... Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros, que encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. É uma das memórias que me restam dele. Que outra coisa me haveria de restar se esta, afinal, não é dele mas de um pensamento meu? Tenho subitamente a visão do cadáver, do caixão em que o meteram, da cova, inteiramente alheia, a que o haviam de ter levado. E vejo, de repente, que o caixeiro da tabacaria era, em certo modo, casaco torto e tudo, a humanidade inteira. Foi só um momento. Hoje, agora, claramente, como homem que sou, ele morreu. Mais nada. Sim, os outros não existem... É para mim que este poente estagna, pesadamente alado, as suas cores nevoentas e duras. Para mim, sob o poente, treme, sem que eu veja que corre, o grande rio. Foi feito para mim este largo aberto para o rio cuja maré chega. Foi enterrado hoje na vala comum o caixeiro da tabacaria? Não é para ele o poente de hoje. Mas, de o pensar, e sem que eu queira, também deixou de ser para mim. 

 (Fernando Pessoa - Bernardo Soares. Livro do desassossego, fragmento 317. Org. Richard Zenith. São Paulo, Companhia das Letras, 2000)


Olhar, no LD, é ver para dentro: deparar com a fissura do abismo


Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém. Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reencarnar, reencarnei sem mim, sem ter eu reencarnado.

Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar.

Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento não contém raciocínios, a minha emoção não contém emoções. Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direcção, infinitupla e vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas que são mais giro que águas bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo - vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.

E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda.

E é, em mim, como se o inferno ele-mesmo risse, sem ao menos a humanidade de diabos a rirem, a loucura grasnada do universo morto, o cadáver rodante do espaço físico, o fim de todos os mundos flutuando negro ao vento, disforme, anacrónico, sem Deus que o houvesse criado, sem ele mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível, único, tudo.

Poder saber pensar! Poder saber sentir!

Minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer...

                                                                                                       (Bernardo Soares, frg. 262)


Para quem se interessar pelo assunto leia aqui: Do desassossego ou a geometria do abismo

Para assistir na web: Programa da RTP sobre FP e o LD

"De repente estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto de um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro. Toda a gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar à minha volta. Sinto-me tão isolado que sinto a distância entre mim e o meu fatoSou uma criança, com uma palmatória mal acesa, que atravessa, de camisa de noite, uma grande casa deserta. Vivem sombras que me cercam — só sombras, filhas dos móveis hirtos e da luz que me acompanha. Elas me rondam aqui ao sol, mas são gente."                                                                                   
                                                                       Bernardo Soares, in: Livro do Desassossego  (grifos meus)



Subjetividade e alteridade em Álvaro de Campos:

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).

Sinto urna simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida —
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento de justiça, ou capitão de cavalaria
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo mais é estúpido como um Dostoievski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos
tristes por profissão.

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!

Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Já disse: Sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: Sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. (Nota editorial e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1944.

A noção de testemunho em Jorge de Sena (1919 - 1978)
Se a criação heteronímica pessoana, como a dos apócrifos de Antonio Machado, a das “máscaras” de W.B. Yeats, ou a das “personae” de um Ezra Pound, dava expressão a uma pluralidade ontológica, o facto é que essa forma ou técnica de apreensão da diversidade do real se transformava numa fórmula que afirmava um abismo intransponível entre a poesia e o vivido existencial. 
Com efeito, a “criação de personalidades”, criaturas pretensamente autónomas em relação ao seu criador, nomeadamente na heteronomínia, radica na consideração de uma exterioridade do estético em relação ao vivido existencial, reconduzindo a uma, rejeitada por Jorge de Sena, esteticização da experiência. 

(LOURENÇO, Jorge Fazenda. A poesia de Jorge de Sena. Testemunho, Metamorfose, Peregrinação. Lisboa: Ed. Guerra e Paz, 2010.)


Estamos muito longe do dandy, do flanêur e do spleen que pontilham muitas páginas de Baudelaire, (…). Na poesia de Sena, o homem condenado a percorrer os labirintos da cidade não se permite a gratuidade do passeio: é sobretudo um vigilante atento, reflexivo, sempre pronto a acionar alarmes, preferentemente os da consciência. 

(SANTOS, Gilda (org.). Jorge de Sena em rotas entrecruzadas. Lisboa: Edições Cosmos, 1999.2011, p. 82)




Para ilustrar o testemunho seniano, leia-se o poema de 27/10/1942, intitulado "Os Trabalhos e Os Dias", constante no volume Coroa da terra:

Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro
e principio a escrever como se escrever fosse respirar
o amor que não se esvai enquanto os corpos sabem
de um caminho sem nada para o regresso da vida.

À medida que escrevo, vou ficando espantado
com a convicção que a mínima coisa põe em não ser nada.
Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito.
Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,
quando fico triste por serem palavras já ditas
estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos.

Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.
E os convivas que chegam intencionalmente sorriem
e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo
e desenhei uma rena para a caçar melhor
e falo da verdade, essa iguaria rara:
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.



Terça, oito

- Não gosto da gramática, grita o Esquilo com raiva. Quero que as pessoas dos verbos morram todas.
Como matar as pessoas dos verbos? interrogo-me, surpresa, porque nunca tinha ocorrido essa ideia. Ou como neutralizá-las, pelo menos?
Vós pode sempre transformar-se em voz. - experimento - podem atar-se todos os nós num único nó, ou transformar-se em noz e comer-se (...) o tu é o mais resistente, o único que talvez faça falta, e por isso se deixa ficar, porque sempre vem dele ou parte para ele uma carta de amor uma agressão ou um insulto (...). 

(Teolinda Gersão, Os guarda-chuvas cintilantes. Lisboa, Publicações Projornal, 1984)


Subjetividade e alteridade

Segundo Franklin Leopoldo e Silva, "a associação da subjetividade com a experiência nos leva a considerar o caráter dinâmico da noção de sujeito: não se trata de uma entidade metafísica, formal ou mesmo psicológica, mas do modo de ser da realidade humana considerada como existência. Essa existência, em seu caráter processual, é contínua alteração de si, constante constituição. (...) o processo de tornar-se sujeito é vivido em regime de intersubjetividade, e a experiência subjetiva é sempre experiência intersubjetiva (...). As relações humanas são constitutivas: o que venho a ser depende do modo como vivo com os outros.
(...) Parto então do fato de que estou sempre em presença do outro: o outro está sempre diante de mim, e essa presença é tão forte que me constitui. O outro está antes do Eu.
(...) Em outras palavras, o princípio metafísico da identidade é substituído pelo princípio ético da alteridade.


(Franklin Leopoldo e Silva, em O Outro)


Na contramão de uma tradição filosófica centrada no sujeito, Martin Buber (1878 - 1965), em Eu e Tu, desenvolve uma ética da alteridade:

Filosofia que se constrói a partir das relações que o homem estabelece com o mundo e com o outro. Buber utiliza a expressão "Palavra-princípio":
"Uma palavra-princípio é o par EU-TU. A outra é o par EU-ISSO no qual, sem que seja alterada a palavra-princípio, pode-se substituir ISSO por ELE ou ELA.
Deste modo, o EU do homem é também duplo.
Pois, o EU da palavra-princípio EU-TU é diferente daquele da palavra-princípio EU-ISSO."

                                    (Martin Buber, Eu e Tu. São Paulo, Centauro Editora, sd.)

"Levinas acentua a absoluticidade dos pólos do eu e do outro. O outro é o outro, isto é, unicidade; é exterior, é estrangeiro para mim, não será alcançável, encontra-se na distância infinita para com o meu eu. Ele é sujeito absoluto. Mas o outro se apresenta diante de mim como o desprotegido e sem forças; ele apresenta-se em plena nudez diante do meu "eu". O outro confirma a minha unicidade. Ele encontra-se na exterioridade de toda relação de poder e de liberdade do meu eu."

(Antonio Sidekum, Ética e alteridade: a subjetividade ferida. Editora UNISINOS, São Leopoldo, RS, 2002)


O termo “hospitalidade”, segundo Derrida, vem do latim hospes, formado de hostis ("estranho"), que também significa o "inimigo estranho"(hostilis) ou "estrangeiro", que ora é reconhecido como "hóspede" (hôte), ora como "inimigo".


 Leia também: "Entre hospes e hostis: hospitalidade como resposta ao estrangeiro", de Marcelo Fabri (https://drive.google.com/file/d/1s2I69t382hD7cGSn0JE0RuzhirdL3V1R/view?usp=sharing)


Literatura e Ética

Entendemos a Ética como um conjunto de práticas que constituem os sujeitos diante da alteridade e da comunidade em que vivem, na ausência de um sistema de valores que os oriente de forma prescritiva . Ao contrário da moral, não se trata de um código que devemos observar, mas de um saber descritivo de nossas práticas subjetivas e relacionais.

Interessa-nos saber como, no universo da ficção, o sujeito se constitui diante do outro; diante do biopoder; quais os dispositivos interferem nessa constituição; como considera e reage à alteridade nesse processo; o quanto adere a uma comunidade de valores e práticas; como opera nesse contexto e que novas dimensões se podem criar e exercitar a partir da imaginação criativa.

Segundo Castor M. M. Bartolomé Ruiz num texto intitulado “A Ética como prática de subjetivação: esboço de uma ética e estética da alteridade”, a Ética se define não como código, mas como prática descritivo-analítica das ações humanas num horizonte hermenêutico-simbólico:

"O decisivo da ética é a prática. A prática como forma singular e pessoal de vivenciar os valores. Essa prática ética não só possui uma relação de exterioridade a respeito de um código, mas ela contém uma incidência no modo de constituição da subjetividade, na forma de ser do próprio sujeito. A ética é a potencialidade e desafio que cada pessoa tem e enfrenta de poder, através da prática vivenciada de valores e formas de existência, se constituir como sujeito, já que a constituição do sujeito se faz sempre através da prática ética. É o que podemos denominar de ética como prática de subjetivação. (...) Essa é uma perspectiva da ética que merece maior reflexão, pela relevância que ela apresenta para a nossa contemporaneidade."

Para além de uma conceituação clara sobre essa perspectiva, o texto de Bartolomé Ruiz avança sobre a ideia de um sem fundo humano, isto é, uma abertura do humano como “criador de si mesmo e recriador do mundo em que vive”, de modo a poder ultrapassar os determinismos naturais e históricos que evidentemente concorrem para a sua constituição; avança também para os estudos da alteridade - a partir dessa abertura ao infinito que está implicada no face a face, na antecedência do outro para a construção ética do sujeito.

Na dimensão criativa dessa concepção do humano, a Literatura, afinal, coloca-se como um campo de experimentações éticas extremamente prolífico, capaz de projetar novas possibilidades de ser e estar no mundo, a partir da imaginação e das possibilidades ontológicas experimentadas pela linguagem literária.



A Comunidade, segundo Walter Benjamin:

Desde muito jovem que Walter Benjamin defendia um ideal de comunidade, muito ligada à recuperação de uma metafísica da linguagem - aquela que não conhece nem meio nem objeto, nem destinatário da comunicação". Essa concepção se diferencia do que entendia ser "uma concepção burguesa da linguagem" segundo a qual "o meio da comunicação é a palavra, o seu objeto é a coisa, o seu destinatário é o homem". A linguagem é uma revelação da essência espiritual do homem. (Maria João Cantinho: "A língua que advirá: o tempo da comunidade")


A Comunidade Interpretativa, segundo Stanley Fish


“A literatura é o produto de um modo de ler, de um acordo comunitário acerca daquilo que deverá contar como literatura, que leva os membros da comunidade a prestar um certo tipo de atenção a ‘criarem’ literatura.
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Os sentidos não são propriedades nem de textos fixos e estáveis nem de leitores livres e independentes, mas de comunidades interpretativas que são responsáveis tanto pela configuração das atividades do leitor, como pelos textos que essas atividades produzem.”

(Stanley Fish, Is there a text in this class? The authority of interpretative communities, 1980)


Forma e Hospitalidade


O fragmento é o gênero anfitrião de todos os gêneros:

“Para Blanchot (...) os fragmentos constituem ‘conjuntos furtivos’, à deriva, e ‘são destinados, em parte, aos brancos que os separam, encontrando neste afastamento, não aquilo que lhes dá fim, mas aquilo que os prolonga ou os faz esperar pelo que os prolongará, ou já os prolongou...’ (Blanchot, L’Écriture du désastre, Paris, Gallimard, 1980). É esta condição de pertença, esta forma muito particular de unidade, que permite que um conjunto de fragmentos se imponha como campo unitário  (já em Heráclito e Parmênides, no Tratado de Wittgenstein ou no Zaratustra de Nietzsche), e constitui um bom argumento contra a sistematicidade. O fragmento é um forma que tende para a sociabilidade, pressuposto fundamental da poética romântica da anulação das fronteiras entre os gêneros. Uma sociabilidade que está presente, quer na relação dos fragmentos entre si, quer na sua qualidade de gênero anfitrião de todos os outros – da poesia à narrativa, da filosofia à crítica, da música à ciência. (...) Uma linguagem que é, para Schlegel, a do incompleto, alusivo, obscuro e inacabado, uma fala própria que provoca uma “irritação” infinita, motor da busca incessante do sentido, fator de ativação da imaginação e da inteligência do leitor. Do ‘leitor hábil’ – diria mais tarde Mallarmé da sua poesia, também fragmentada, do Coup de dés -, já que a escrita do fragmento é uma daquelas que realmente pensa no leitor e o valoriza.”

João Barrento: “O que resta sem resto: do ensaio ao fragmento”, in: O Gênero Intranquilo: anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010. (grifos meus)
























Se a criação heteronímica pessoana, como a dos apócrifos de Antonio Machado, a das “máscaras”
de W.B. yeats, ou a das “personae” de um Ezra Pound, dava expressão a uma pluralidade ontoló-
gica, o facto é que essa forma ou técnica de apreensão da diversidade do real e transformava numa
fórmula que afirmava um abismo intransponível entre a poesia e o vivido existencial. Com efeito,
a “criação de personalidades”,
criaturas
pretensamente autónomas em relação ao seu
criador
,
nomeadamente na heteronomínia, radica na consideração de uma
exterioridade
do estético
em
relação ao vivido existencial, reconduzindo a uma, rejeitada por Jorge de Sena, esteticização da
experiência. (Lourenço, 1998: 121)
Uma das características mais importantes e inovadoras deste testemunho seniano,
conforme se pode depreender do texto de Lourenço citado acima, é a oposição ao “drama
em gente” pessoano. Ao se desviar da despersonalização do célebre precursor, uma das
características cimeiras e revolucionárias de Pessoa, Sena confere à sua obra um vetor que
aponta para a discussão ética de maneira evidente, uma vez que testemunhar é incidir na
realidaneira aberta, política e humana, evitar a esteticização como demonstrou
Lourenço. Se em Pessoa, a estratégia rimbaudiana de “sentir tudo de todas as maneiras”
foi eficiente para multiplicar as possibilidades de enunciação pelas máscaras da hetero-
nímia, para Sena, o testemunho seria uma forma de concentrar a subjetividade no olhar
singular de um autor que se depara com um eventual ouvinte (o leitor), sendo para ele
que o poeta deixará “sua carta ao mundo”, sua visão própria e extremamente crítica, para
poder c

Um comentário:

  1. A propósito da aula desta semana, compartilho dois poemas de Miguel Torga que dialogam com a ideia de testemunho. O segundo, “Contra a destruição”, estabelece um diálogo direto com “Os trabalhos e os dias”, de Jorge de Sena, retomando imagens do poema (embora seja mais econômico nas palavras).

    "Coimbra, 16 de Dezembro de 1952
    Memorando

    Senhor:
    Se o meu tempo é de campos de concentração,
    De bombas de hidrogénio e de maldição,
    E de cruéis tiranos
    Com pelos nos ouvidos e no coração,
    Que ando eu a fazer aqui,
    Funâmbulo de angústia
    Com miragens de esperança?
    Pois que não há lugar neste universo imundo
    Para bucólicos prados de trigo e calhandras,
    E foguetes festivos,
    E chefes que eu eleja e destitua,
    Corta lá no canhenho do destino
    A humana condição de ser poeta!
    Sinto em nome de todos que se calam
    As vergastadas de absurdo e medo
    Que consentes na alma dos mortais.
    E como nada posso, senão isto:
    Protestar, protestar,
    Desta maneira inútil que tu vês
    E o rebanho pressente,
    Risco na ardósia dos obreiros laicos,
    Que procuram sentido à tua obra,
    O sagrado condão de dedilhar
    Nas grades da gaiola que fizeste
    Quando eras rapaz
    E mal sonhavas quanto mal fazias.
    Jovem deus criador,
    Assombrado de cada imperfeição
    Do barro da olaria,
    Ias doirando esses desenganos
    Com milagres gratuitos e originais.
    Saía-te das mãos, cercada de incertezas,
    A redonda amargura deste mundo;
    Que remédio senão alguns harpistas
    A entoar harmonias ideais!
    Mas o tempo passou. Envelheceste.
    Morreu-te a fantasia.
    E queres a repressão dos que te negam
    Ou te corrigem.
    Eu e outros, perdidos neste inferno
    Onde nenhum Plutão nos ouve ou nos tolera,
    Somos a consciência atormentada
    Pelos anjos da guarda que te servem,
    A trair os irmãos, tão condenados
    Como eles.
    Por caridade, pois,
    E divina lisura,
    Apaga lá no céu
    A luz que representa
    A vida destas pobres criaturas
    Cuja missão traíste, por decrepitude.
    Bardos da luz que punham nos teus olhos
    E da graça do mágico universo
    Que generosamente
    Como um pomo irreal viam na tua mão,
    Rangem agora os dentes de revolta
    A falar de justiça,
    De igualdade,
    E de amor,
    Coisas que já nem tu
    Sabes que valores são.
    Risca! Risca no livro etéreo
    O infeliz e belo
    Nome de Orfeu!"
    (Torga, In Diário VI , 1953)

    "Coimbra, 11 de Maio de 1949
    Contra a destruição

    Aqui, amarrado à mesa
    Do escritório,
    Humilde laboratório
    de poeta,
    Ensaio o novo poema.
    Emoções desintegradas
    Numa cadeia de rimas,
    Para erguer as destroçadas
    Hiroximas."
    (Torga, In Diário VI)

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