quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Cenas de um casamento: Pequenos Burgueses, de Carlos de Oliveira

 "Se o romance quiser permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas auxilia na produção do engodo" (Adorno: "Posição do narrador no romance contemporâneo")


" O real não é representável, é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura." (IDEM)

Preocupação de Carlos de Oliveira: "Uma concepção cada vez mais ampla e criadora de realismo" (Gastão Cruz)

                                 (cena do filme O fantasma da liberdade, de Luis Buñuel, 1974)


Para compreender melhor o romance, clique aqui


PEQUENOS BURGUESES (1ªs edições) – 1948, p. 43.
“Medeiros que tinha agora a banca, entregou a carta ao espanhol. Pablo pensou, sem dar o mínimo sinal de arrelia: “Cabron! Um duque de paus! Bien puderas pregar-lo em la testa”. Tinha-se feito com quatro trunfos miúdos. “Ou talvez já no precises”. Puxou a cigarreira calmamente e pediu lume ao dr. Albertino. D. Álvaro continuava a ganhar”.
“Faltava naquela noite o Navarro dos porcos, marchante e ourives, que era a teta gêmea do espanhol. Com uma pequena diferença. Pablo perdia serenamente; o Navarro escoicenhava, como o Delegado estava a fazer naquele momento.
O dr. Albertino dizia a si mesmo que era preciso serenar. Tinha resolvido aplicar um golpe, mas só com os nervos no sítio podia fazê-lo. Depois de medir os prós e os contras, resolvera trapacear na última mesa, que era sempre a maior. Haviam instituído a norma de triplicar o passe nos derradeiros jogos de cada noite. Uma chance para os codilhados; ou um entalanço inda mais duro. Em todo o caso uma probabilidade.
Entrara já no dinheiro que tinha reservado para o presente de Cilinha. Era necessário revê-lo de qualquer forma; não podia apresentar-se na festa de mãos a abanar. Positivamente. Mas se fosse apanhado na batota? Um Delegado do procurador da República  surpreendido  em flagrante vigarice! Bonito serviço! É claro que podia alegar um engano, um erro, qualquer coisa do gênero. Bom: o essencial agora era saber acalmar-se. Tinha pelo seu lado, uma vantagem de monta: ninguém ali fazia batota, a não ser D. Álvaro, claro. E isso levava os outros a prenderem-se demais com a vigilância do fidalgo.
(...)
Ao fim da sessão, estava mais ou menos no dinheiro de Cilinha. Cá fora , quando se despedia dos companheiros, Pablo Florez bateu-lhe no ombro e disse naquela linguagem híbrida que o distinguia:
- Vamo-nos os dois, doutor. Yo preciso hablar-lhe.
Seguiram pela rua enluarada e deserta. A noite, cheia de estrelas, punha tudo claro como de dia. Ouviram ainda a charreta de D. Álvaro, lá para baixo, no caminho calcetado que levava à Fonterrada. Meia dúzia de passos adiante, Pablo disse secamente:
- Yo vi.
O delegado estremeceu:
- Viu o quê, Pablo?
- La trapaça.
E, sem transição, continuou:
- Usted reparte comigo. E nadie lo saberá.
O dr. Albertino quis negar:
-Não houve trapaça nenhuma...
A voz tremia-lhe um pouco. O espanhol tinha-o nas unhas. Sabia bem que era difícil provar a batota, mas não podia esquecer que as palavras de Pablo Florez o prejudicariam de uma maneira grave. O outro era pessoa antiga e considerada em Corgos. Foi, já sem energia, que repetiu:
- Nenhuma, Pablo.
No adianta, hombre. Yo vi.
O delegado puxou molemente a carteira, contou metade do dinheiro e passou-lhe, sem uma palavra. O espanhol despediu-se:
- Bueno, dr. Asi es mejor. Yo havia perdido mucho.
E, já de longe, prometeu ainda:
- No lo saberá nadie.
O dr. Albertino, parado a meio da rua, apenas pôde murmurar entre dentes:
- Cachorro!” (pp. 46-49)



PEQUENO BURGUESES (3ª edição)
El Medeiros tiene la banca. Faço-me com quatro trunfos bajos e peço una carta. El cabron me dá el duque de paus. Bien puderas pregá-lo em la testa. Talvez já no precises. Merda, mierda, merda. Estes tipos me julgam impasible. Pablo Florez pierde sin pestanejar. Por amor de Diós, de Déus, de Deus, quien pensan ustedes que soy eu? Um Buda, um tipo de metal com niervos de acero? Faço el posible e el imposible por parecerlo. Verdad. Es uma buena, bona, boa máscara para el resto, las mujeres, los negócios, pero cansa. El duque de paus.  No tienes una cartita mas desgraciada, hijo de la puta, para este hombre de hierro que pierde como se no fuera nada com ele?
Uma cartita sin ninguna, nenhuma pinta, uma cartita blanca, que es lo que a Pablo Florez le gusta mais para dar la idéia perfeita de uma estatua de piedra? E ahora, agora, calma. Estes desabafos interiores son la descompressión necessária, pero no los deixes transparecer. Eso. Indiferente, los ojos quietos como dos lagos helados, los comparou assim certa noche de verão, verão? Se dice verão?, una chica, se dice chica?, se dice dice? Bien, dos lagos helados, pero hás-de lhorar mucho em tu vida, la nieve se fundirá em lágrimas, passión, amor, acrescentou la cigana, e serás de nuestra raza outra vez. Yo lo soy por dentro e eso precisamente me levou a esta máscara sem emoção, a este autodomínio, bravo, me ocorre agora mejor, melor, melhor el português, a este rosto talhado na vieja madera de la experiência.
Também o delegado aconselha calma a si mesmo. Pensa aplicar um golpe, que remédio, para salvar o dinheiro da prenda de Cilinha. Mede os prós e contras, desgasta-se, fuma desalmadamente.
 (...) Ao fim da sessão, o Delegado está mais ou menos no dinheiro de Rosário. (...) Cá fora, à despedida, Pablo Florez bate-lhe no ombro:
- Yo vi.                                                                                
- Viu o quê?
- La trapaça.
- Que trapaça?
- Vi, es quanto basta. Pero usted reparte comigo e nadie lo saberá.
- Pablo, sou um tipo de bem.
- Metade para usted, metade para mi.
- Isto é um roubo.
- Quien rouba a ladrón...
- Metade?
- Metade.
- Pablo...
- Asi es mejor. Yo habia perdido mucho. Grácias.
- Pablo, nadie lo saberá? Desculpe, ninguém saberá?
- Ninguém.
E afasta-se, murmurando entre dentes:
- Chiça. No sou de hierro, ni de piedra”.




























                                                                                                             
Vejamos a posição do narrador para descrever a cena de linchamento que os pequenos burgueses agenciam:

"O sangue escorre-lhe pelos olhos, deve deixá-lo cego. Toca a
andar. Cai, ergue-se, e volta a cair, vezes sem conto. Depois, as pauladas, os murros, deixam de lhe doer. Pelo menos parece. Já não se defende. Sente apenas medo, tanto, que se mija pelas pernas abaixo. Assassino. Ladrão. (...) Aguilhoam-lhe como se faz aos bois, levamtam-no a pontapé." 


Poemas de Carlos de Oliveira

Sobre o lado esquerdo
De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma : partem -se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.

No segundo caso, o homem que não dorme pensa:"o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim,deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo,esmagar o coração." 


(Carlos de Oliveira, in Sobre o Lado Esquerdo)


Soneto da Chuva
Quantas vezes chorou no teu regaço 
a minha infância, terra que eu pisei: 
aqueles versos de água onde os direi, 
cansado como vou do teu cansaço? 
Virá abril de novo, até a tua 
memória se fartar das mesmas flores 
numa última órbita em que fores 
carregada de cinza como a lua. 
Porque bebes as dores que me são dadas, 
desfeito é já no vosso próprio frio 
meu coração, visões abandonadas. 
Deixem chover as lágrimas que eu crio: 
menos que chuva e lama nas estradas 
és tu, poesia, meu amargo rio. 

(Carlos de Oliveira, in 'Terra de Harmonia')


Infância
Sonhos 
enormes como cedros 
que é preciso 
trazer de longe 
aos ombros 
para achar 
no inverno da memória 
este rumor 
de lume: 
o teu perfume, 
lenha 
da melancolia. 

(Carlos de Oliveira, in 'Cantata')

Dentes
Os dentes, porque são dentes, 
iniciais. Na espuma, 
porque não são saliva 
estas ondas 
pouco mordentes; este 
sal que sobe quase 
doce; donde? 
Numa espécie 
de fogo: amor é fogo 
que arde sem se ver; 
porque não é 
de facto fogo este frio aceso; 
da saliva à lava 
passa pela espuma. 
Só os dentes. 
Duros, ácidos, concentram-se 
tacteando a pele, 
tatuando signos sempre 
moventes 
de fúria. Mordida 
a pele cintila; espelho 
dos dentes, do seu esmalte voraz; 
suavemente. 

(Carlos de Oliveira, in 'Pastoral')


Leitura
Quando por fim as árvores 
se tornam luminosas; e ardem 
por dentro pressentindo; 
folha a folha; as chamas 
ávidas de frio: 
nimbos e cúmulos coroam 
a tarde, o horizonte, 
com a sua auréola incandescente 
de gás sobre os rebanhos. 
Assim se movem 
as nuvens comovidas 
no anoitecer 
dos grandes textos clássicos. 
Perdem mais densidade; 
ascendem na pálida aleluia 
de que fulgor ainda? 
e são agora 
cumes de colinas rarefeitas 
policopiando à pressa 
a demora das outras 
feita de peso e sombra. 

(Carlos de Oliveira, in 'Pastoral')

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