quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Alteridade em Duas Pessoas


Duas Pessoas


Eu digo: o teu cabelo. Ela está agachada junto à cama, procurando um sapato que se extraviou. Ergue a cabeça, de lado, e os olhos lentos e confusos parecem indagar desamparadamente. Estas pequenas prostitutas ficam diante de mim desprovidas quase de qualidades humanas. Possuem o corpo, máquina de algum talento, enquanto a minha solidão continuamente se exerce e cria uma zona intensa, extrema, atravessada por outras presenças, estranhas criaturas calorosas que aparecem e desaparecem, que se substituem, sem atingirem nunca uma forma definitiva. Criaturas incertas, mas verdadeiras. Expressões de uma nebulosa aspiração. Que alcançariam as palavras num dia suposto. Ou me tocariam à noite, ao pé de uma lâmpada íntima, e deste modo provocariam em mim, pela memória, densas associações, frêmitos, o sentimento da alegria ou da proximidade da morte. O meu cabelo? – pergunta ela. Está ainda nua. Os joelhos, os seios, os ombros, os sombrios olhos atônitos – são realmente belos. E eu sorrio como se me desculpasse. Devo dizer: não sou puro. Talvez deva dizer: quando murmurei essa frase que se poderia confundir com um apelo ou um repentino e insustentável movimento da emoção (“o teu cabelo”), não pensava, não sentia nada. Eis a verdade: sou uma criatura devastada pelo egoísmo. É melhor para com tais explicações. Aluguei esta casa quando vim do estrangeiro. Sentia-me transbordar de experiências desordenadas e irrevogáveis. Um pouco enjoado de pequenas cidades descobertas à noite, quando se sai numa estação de caminho de ferro. Farto de gentes, costumes, acontecimentos. Viajar é idiota. Bom para a crassa primeira juventude. Também para os homens de negócios e os intelectuais que vão escrever livros de viagens ou fazer conferências ou estabelecer, no equívoco plano das literaturas, as fraternidades inter-nacionais. Regressei farto, farto, um milhão de vezes farto. Aluguei a casa, comprei livros e discos, uma cama, pouco mais. Gosto dos lugares ascéticos. Sou uma pessoa esquisita. Deito-me e ponho-me a fumar e a ouvir discos. Ouço Bach. Gostaria de ter um cravo e tocar. Fumo muito. Faz-me mal. Abro um livro e leio duas ou três páginas. Às vezes trago uma prostituta para casa e tento que ela beba comigo meia garrafa de brandy. Mas não sei conversar, e ela sente-se constrangida, lesada. Então digo qualquer coisa: o teu cabelo, por exemplo. E a rapariga não compreende. Há ocasiões em que as prostitutas imaginam tratar-se de um cumprimento, e sorriem. Sorriso vacilante, que se não sabe se crescerá, apossando-se do rosto todo, da pessoa toda, ou se então será reabsorvido em si mesmo. Estaria porventura no meu poder fazê-lo aumentar até a emoção, à gratidão. Mas fico-me por aí. Acendo mais um cigarro. Ela tenta: o meu cabelo? Não percebe, ou espera que eu faça surgir, dentre a massa de humilhação e marginalidade da sua vida, essa trêmula, velos alegria. Eu que sou um homem, que possuo a ambígua faculdade da doçura viril, e posso exibir a comoção perante a beleza, mesmo a fortuita e frágil beleza humana. Mas estaco. Sou cruel? Ou frio. Para o caso tanto faz. Digo: queres um cigarro? Ela abana negativamente a cabeça. E o tal cabelo mexe-se de cá pra lá sob a luz, escorrega por cima dos ombros. Ela passa as mãos devagar, as mãos espalmadas, sobre o tal cabelo que brilha sombriamente na luz. Levanta-se, nua, com o tal cabelo muito caído pelas costas, pelos ombros, e o sapato – enfim encontrado – na ponta dos dedos. O sapato destrói a mão direita, ah! destrói-a irrecuperavelmente, e só a mão esquerda permanece com alguma dignidade, tombada junto à perna, inútil, despertando-me uma qualquer idéia excessivamente brumosa, que eu agora procuro tornar mais real, dizendo: a tua mão. Mas ela confunde e ergue a mão direita com o sapato um pouco sujo, a verem-se lhe as palmilhas escurecidas. Poderia eu amar esse sapato, quer dizer: essa mão caminhando ao encontro de uma possível emoção, de um estremecimento subtil que abrisse por fim a veemente máquina interior e nos fizesse a nós dois, a jovem prostituta humilhada e o homem gasto, a benignidade de breve mas verdadeiramente humana conciliação? Fico deitado tardes inteiras, fumando interminavelmente. Bach. Cinco páginas de Hamlet, 2º ato, 2ª cena. A ficção da loucura por parte de Hamlet é dúbia. Polônio por seu lado submete-se às regras do perigosíssimo jogo. Nesta atmosfera nem a ficção da loucura é gratuita, nem a lucidez casual. Mas eis toda a verdade no espaço rápido e fechado. As leis do fingimento são secretas, intraduzíveis. Perfeito. Nelas reside o segredo total. Quarto do castelo de Elsenor. A ficção (ou fingimento) é o único caminho para a verdade? – Que ledes, meu senhor? – Palavras! Palavras! Palavras! – Mas de que se trata, meu senhor? – Entre quem? E Bach ao fundo. Concerto Brandeburguês n.º5 pela Orquestra de Estugarda. Transferi tudo. Eis como funcionam estas minhas admiráveis virtudes humanas. E a pobre rapariga levanta-se, depois de recusar o cigarro, e aproxima-se com o seu desgraçado sorriso, vulnerável assim entre a última humilhação e uma espécie de momentânea ressurreição do valor da vida e da pessoa. Tudo isso à minha frente, entre os belos sons de cravo de Bach e as palavras de uma trágica e tão significativa comicidade de Shakespeare. Entre quem? Ora aí está: deveria ser entre mim e ela, e não palavras, palavras, palavras – mas um grande assunto. O assunto de um empenhamento, uma devoção humana. Não gosto de ninguém, mas pergunto: não tenho eu obscuras, calorosas e ricas faculdades? Ela avança para dar-me um beijo. Recebo-o na boca e – fácil! – retribuo. Enoja-me a saliva que me fica nos lábios, e confundo-a depressa com a minha, passando a língua por cima. Pois eu tenho muita saliva, muita abjeção onde afundar a abjeção dos outros. Estou deitado e, pela cidade adiante, caminha a prostitutazinha. Embrulhada no seu casaco, atravessa as ruas, pelas sombras, pelas luzes, debaixo de árvores e prédios enormes. Vem, vem. Bate-me à porta. Eu poderia gritar, fazendo calar o disco e atirando para o lado o meu livro: chega alguém! Ela entra, etc., etc. Quero poupar-me à ignara massa de palavras que descreveriam a sutileza de quantos movimentos, o fulgor de quantas revelações, o ondulante espetáculo do nascimento e ação de um corpo. Passo-lhe a ponta dos dedos pelo rosto. Não são as rugas ou a gordura de um rosto, qualquer falha, o que me repugna. Detesto em bloco a incapacidade humana em atingir a pureza ou a intensidade criada pela solidão. Será isso? Ou serei eu uma criatura estéril, sem dons, sem expansão? Que oportunidades! Ela está agachada, procurando esse perdido sapato providencial; curvada, curvada como um ser indefeso, oferecido a maravilhosas capacidades minhas. Eu aproximar-me-ia e a minha mão correria ao longo do seu cabelo, tocaria no ombro, tomaria sua mão. E ela elevava então para mim os grandes olhos onde o terror se diluía, os olhos que recebiam e devolviam uma luz maior. Eu poderia dizer: o teu cabelo. Ou: a tua mão. Ou ainda: tu. Antes disso, que posso saber, embora aconteça aquilo a que tão imprópria e ingloriamente se chama intimidade? Uma casa ascética depois de um fácil tumulto móvel, Shakespeare e Bach após lugares e tempos improfícuos. Tudo uma visão desbaratada pelo caráter básico da renúncia ao ardor, à esperança, à alegria. A mulher diz: o meu cabelo? Eu acendo um cigarro e pergunto: queres um cigarro? E enquanto ela se levanta para alguma coisa porventura definitiva, guardada no tesouro dos séculos, eu afasto-me e, acercando-me da janela, passo a mão pelos vidros embaciados, olho a rua e murmuro: deixou de chover.




Este senhor taciturno que me recebe com uma fria gentileza parece ter viajado muito. Agora vive na nossa cidade – que não sei se é também a dele – numa casa quase sem móveis que me faz sentir gelada, mais gelada ainda depois de atravessar as ruas escuras e nevoentas. Ele paga-me bem, este senhor, e por isso venho muitas vezes. Está sempre só, bebendo e ouvindo discos intermináveis. A casa está cheia de fumo. É horrível. Mas pergunto: será apenas por me pagar bem que volto sempre? Bato de leve à porta, e ouço o disco parar bruscamente ou descer para um sussurro. Os passos deslocam-se pelo corredor, a porta abre-se muito devagar. E cá está a cara dele – feia, triste – e os olhos fixos. Sorri incrivelmente – assim como quem vai pedir desculpa, e depois fica de súbito muito sério. Estou farta dos homens, quase nunca tenho prazer em ir para a cama com eles. Porque é tão degradante a insolência dos jovens como a devassidão dos velhos. Sinto-me muito só junto deles, acho-os absurdos com o seu sofrimento mal oculto atrás de uma simulada virilidade. Há neles uma solidão igual à minha, tão premente como ela, mas a que a fatuidade tira qualquer nobreza. Os homens imaginam, suponho, que me sinto humilhada na minha profissão e que existem em mim, sempre prontos, um apelo, uma súplica. Mas não. Estou só, apenas isso, e muita gente já tenho eu ouvido dizer o mesmo. Às vezes ele toca-me no rosto com muita atenção e vejo que há por detrás dos seus gestos, do silêncio, um ardor exasperado mas impaciente ou envergonhado de si. É um homem que eu deveria socorrer. Tento mostrar-lhe que há algures, nas nossas possibilidades humanas, uma zona onde a vida se regenera. Eu própria gostaria de ser mais alegre e generosa, mas hesito nos meus impulsos. Existe nos homens essa insuportável fatuidade, um orgulho estúpido e, lá no fundo, uma espécie de condição própria: inalcançável, repugnante. Decerto: é misericórdia o que desperta em mim, ou o desejo talvez de abrir nele um caminho tenazmente vedado. Digo-lhe: os seus olhos. Mas arrependo-me. E ele olha para mim aterrorizado. Depois fecha-se. Oferece-me de beber e recuso quase sempre. E então murmura palavras indefinidas, embaraçadas: a tua mão, a outra, a mão livre. Sim, vai pedir-me que fique, e o afague, sei lá, talvez que morra com ele, tomando os dois um tubo de comprimidos. É homem para isso.Cheira a desespero a quilômetros de distância. Mas volta-se para a janela enquanto me visto, e então só penso em desaparecer, abandonar esta criatura atacada pela lepra, este homem que porventura eu salvaria, se houvesse em mim mais força e determinação ou mais doçura ou uma piedade maior. Porque é um ser minado, destruído. Ainda vivo apenas para pedir socorro. Vou junto dele, toco-lhe no braço, beijo-o na boca. Um momento apodera-se de mim: salvá-lo, salvá-lo! Mas eu própria estou cansada, farta das pessoas, os falsos enigmas, as noites em que entro e saio da cama de homens desesperados. Mas este homem perturba-me. Poderia amá-lo, erguê-lo da sua dolorosa confusão, colocá-lo numa dignidade de que, é evidente, perdeu o sentido. Agita-se de um lado para outro com as grandes mãos batendo contra as pernas, magro e cheio de uma fome terrível. Fome desta mulher que chega cheirando à cidade noturna. Eu poderia entrar, agarrar-me a ele, dizer-lhe assim: aqui estou. Ele é ridículo, ridículo. Com a sua música, os olhos falsamente frios, o seu resguardo mudo. Uma parte de mim mesma resiste, a parte mais clara e isenta, a mais implacável, mas também porventura a mais justa. É um inimigo. Estes homens esbulham-nos. Exploram a fonte maternal de que somos dotadas, ficam ali sugando o nosso leite, e deixam-nos completamente vazias. Raça de exploradores. Mergulham a cabeça entre os nossos seios brancos e somos obrigadas a acariciá-los em silêncio, enquanto de olhos cerrados, através de uma suntuosa orgia de recordações e contradições, compõem a sua paz interior, enquanto se recuperam, eles, deixando-nos exaustas. Então dizem: os teus seios. Ou: o teu cabelo. Miserável. Mas estremeço. Cegueira maternal, furiosa força de doçura que me empurra para o homem, para a sua perpétua e louca orfandade. Eu poderia fechar os olhos, avançar por esses equívocos terrenos, chegar lá, chegar lá. E esse espírito abria-se, reorganizava-se – o espírito do último homem. Queres um cigarro? – pergunta ele. Aceito. Acende-mo com gentileza, embora se pudesse esperar, devido a toda essa tensão, que simplesmente me atirasse o maço de cigarros e a caixa de fósforos. Pretende ser distantemente gentil, mas a mão treme-lhe quando me estende os cigarros. Quer dar-se, dar-se para lá de qualquer expressão inóspita, da teoria masculina da força e do poder. E então ocupo-me do meu corpo. Penteio-me, calço as meias, ponho batom. O homem folheia um livro. Coloca um disco no pick-up. E quando se vira, talvez para dizer: por favor, fica – eu levanto a cabeça e pergunto: já deixou de chover?

Herberto Helder, in: Os Passos emVolta, 1963


 

Capa da 6ª Edição


"Chamo de dobrar-se-em-si-mesmo o retrair-se do homem diante da aceitação, na essência do seu ser, de uma outra pessoa na sua singularidade, singularidade que não pode absolutamente ser inscrita no círculo do próprio ser e que contudo toca e emociona substancialmente a nossa alma, mas que de forma alguma se lhe torna imanente; denomino o dobrar-se-em-si-mesmo a admissão da existência do Outro somente sob a forma da vivência própria, somente como “uma parte do meu eu”. O diálogo torna-se aí uma ilusão, o relacionamento misterioso entre mundo humano e mundo humano torna-se apenas um jogo e, na rejeição do real que nos confronta, inicia-se a desintegração da essência de toda realidade."

(BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo, Editora Perspectiva, 1982)


Excertos para discussão:


"A nudez, oposta ao estado normal, tem certamente o sentido de uma negação. A mulher nua está próxima do momento da fusão, que ela anuncia. Mas o objeto que ela é, ainda que o signo de seu contrário, da negação do objeto, é ainda um objeto. É a nudez de um ser definido, mesmo se essa nudez anuncia o instante em que seu orgulho passará ao indistinto da convulsão erótica. Em primeiro lugar, é a beleza possível e o charme individual dessa nudez que se revelam. É, numa palavra, a diferença objetiva, o valor de um objeto comparável a outros."

 (BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. de Claudia Fares. São Paulo, ARX, 2004, p.25)



"Toda a atividade do erotismo tem por fim atingir o ser no mais íntimo, no ponto onde ficamos sem forças. (...) Toda a realização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que, no estado normal, é um parceiro do jogo. A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, quer dizer, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser além do retrair-se em si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade por intermédio desses condutos secretos que nos provocam o sentimento de obscenidade." 

(BATAILLE, 2004, pp.28-29)




Contrapontos: 
Para pensar este conto, leia-se:  

1.Um poema do próprio Herberto Helder



O amor em visita

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. 
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei. 

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte. 

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte. 

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva. 

- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura. 

Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe
a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos. 

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua. 

Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes. 

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue. 

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo. 

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras. 

Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo. 

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

                                             Herberto Helder

2. O conto "A Idade das Mãos", de José Luís Peixoto

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

As Novas Cartas Portuguesas: o que pode a literatura? Poesia, erotismo e revolução.

Ova Ortegrafia


Ecidi escrever ortado; poupo asim o rabalho a quem me orta. Orque quem me orta é pago para me ortar. Também é um alariado. Também ofre o usto de ida. Orque a iteratura deve dar sinal da ircunstância, e não tem ustificação oral. E ais deve ter em conta todos os ofrimentos, esmo e rincipalmente os daqueles
ujo rabalho é zelar pela oralidade e ordem ública — os ortadores.
Eu acho que enho andado esavinda omigo e com a grei, com tanta iberdade de estilos e emas e xperimentalismos e rocadilhos que os ríticos e eitores dizem arrocos e os ortadores, pelo im pelo ão, ortam.

A iteratura eve ser uma oisa éria e esponsável. Esta é a minha enúncia ública. (Eço esculpa de esitar nalguns ortes, mas é por pouco calhada neste bom modo de scrita usta ao empo e aos odos).
Izia eu que o ortuguês que ora, nesta ora de rudência e sforço, se não reduz à orma imples, não erve a vera íngua da Pátria. (Por enquanto só orto ao omeço, porque a arte de ortar não é fácil; rometo reinar-me até udo me air aturalmente ortado e ao eio e ao im).
Outros jovens me eguirão o rilho. Odos não eremos emais para ervir na etaguarda os que, em árias frentes, por nós se mputam.
A issão do scritor é dar estemunho e efrigério aos e dos momentos raves da istória, ao erviço dos ideais da sua omunidade; ervir a oz do ovo, espeitar a oz dos overnantes egítimos. 
Colegas, em ome da obreviência da íngua, vos eço pois: 
Reinai-vos a ortar-vos uns aos outros omo eu me ortei.



                                                                                        Maria Velho da Costa, Lisboa, Abril de 1972.


Três escritoras portuguesas, com obra já feita – Maria Isabel Barreno e a Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta, escrevem um livro em conjunto, a que chamaram “Novas Cartas Portuguesas”. Nelas aparecem figuras femininas marcadas por condicionalismos de vária ordem, maltratadas, enclausuradas, dependentes, vítimas de amor ou paixão, casadas à força, enganadas, exploradas… e pacientes!
Procuram um editor. A Dom Quixote – dirigida por outra mulher, Snu Abecassis, que já ousara enfrentar a censura com a publicação da obra de uma das autoras, e tivera como consequência a ameaça de fechar a editora,(...)mostra-se indisponível. Será outra mulher, Natália Correia, directora literária de “Estúdios Cor”, quem ousa enfrentar a censura que reagiu ferozmente: as autoras são acusadas de pornografia e ultraje à moral pública !
O livro foi retirado do mercado e seguiu-se um processo judicial a que só a pressão dos movimentos feministas internacionais e a Revolução de 25 de Abril de 1974 permitiram pôr termo. Dentro do país, devido à censura nos jornais pouco se soube. No estrangeiro, movimentos feministas faziam manifestações, marchas, acontecendo mesmo a ocupação da embaixada portuguesa na Holanda pelas feministas holandesas.
(https://aviagemdosargonautas.net/2011/11/30/mulheres-de-coragem-novas-cartas-portuguesas-por-clara-castilho/)

Segundo a poeta e pesquisadora Ana Luíza Amaral, que organizou a edição anotada das Novas Cartas Portuguesas, publicada em 2010, essa obra "desestabilizou o tecido político e social português e, ao chamar a atenção de outros países, ajudou a denunciar o regime fascista ao mundo."
Caracterizam essas cartas uma "reivindicação obsessiva do corpo como primeiro campo de batalha onde a revolta se manifesta", por ser esta "uma zona de opressão do domínio privado", via de regra coberta pela hipocrisia. Mas este mesmo corpo "funciona como metáfora de todas as formas de opressão escondidas e ainda não vencidas". 
(Maria de Lourdes Pintasilgo, Pré-prefácio às Novas Cartas Portuguesas, 2010)


Quando o burguês se revolta contra o rei, ou quando o colono se revolta contra o império, é apenas um chefe ou um governo que eles atacam, tudo o resto fica intacto, os seus negócios, as suas propriedades, as suas famílias, os seus lugares entre amigos e conhecidos, os seus prazeres. Se a mulher se revolta contra o homem, nada fica intacto. 

(BARRENO, HORTA, COSTA, Novas Cartas Portuguesas, p. 143)


Veja também: 




Veja também a entrevista feita às três Marias após a Revolução: Aqui


Prólogo: um excerto de carta de  Soror Mariana Alcoforado


"Não sei porque te escrevo. Bem vejo que nada mais terás por mim do que compaixão - e essa, não a quero!
Enfureço-me contra mim própria quando penso em tudo quanto te sacrifiquei: perdi a minha reputação, expus-me ao furor dos meus parentes, à severidade das leis deste país contra as religiosas e à tua ingratidão, que parece a maior de todas as desgraças.
(...) Estou viva, infiel que sou! e faço tanto para conservar a minha vida como para perdê-la! Ah, morro de vergonha! (...) Ordena-me que morro de amor por ti! Conjuro-te que me dês este socorro, a fim de que vença a fraqueza do meu sexo e acabe com todas as mimhas indecisões por um ato de verdadeiro desespero. Um fim trágico obrigar-te-ia a pensar muitas vezes em mim."

(Soror Mariana Alcoforado, "Terceira carta" ao Cavaleiro de Chamilly, in: Cartas Portuguesas, 1669)


Em 1972, as "3 Marias" decidem escrever as Novas cartas portuguesas, texto híbrido e inclassificável (cartas, poemas, ensaios, documentos, narrativas). Abaixo algumas citações que dão a conhecer as intensidades dessa obra-manifesto:


1ª citação:


"Compraz-se Mariana com seu corpo. O hábito despido, na cadeira, resvala para o chão onde as meias à pressa tiradas, parecem mais grossas e mais brancas. As pernas, brandas e macias, de início estiradas sobre a cama, soerguem-se levemente, entreabertas, hesitantes; mas já os joelhos se levantam e os calcanhares se vincam nos lençóis; já os rins se arqueiam no gemido que aos poucos se tornará contínuo, entrecortado, retomado logo pelo silêncio da cela, bebido pela boca que o espera. Quebra-se, pois, a clausura: pelos seios ele a tem segura a rasgar-lhe os mamilos com os dentes. Quebra-se pois a clausura? Compraz-se Mariana com o seu corpo, ensinada de si, esquecida dos motivos e lamentos que a levam a cartas e a inventam. – “Descobri que lhe queria menos do que à minha paixão (...)”: – Ei-la que se afunda em seu exercício. [...] Mariana deixa que os dedos retornem da vagina e procurem mais alto o fim do espasmo que lhe trepa de manso pelo corpo. A boca que a suga, a galga, é como um poço no qual se afoga consentida, ela mesmo a empurrar-se enlouquecida, veloz. [...] E a noite devora, vigilante, o quarto onde Mariana está estendida. O suor acamado, colado à pele lisa, os dedos esquecidos no clitóris, entorpecido, dormente. A paz voltou-lhe ao corpo distendido, todavia, como sempre, pronto a reacender-se, caso queira, com o corpo, Mariana se comprazer ainda. "

(Novas Cartas Portuguesas, p. 36)

O corpo é um campo político e historicamente construído


"Existe, talvez, uma outra razão que torna para nós tão gratificante formular em termos de repressão as relações do sexo e do poder: é o que se poderia chamar o benefício do locutor. Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição, à inexistência e ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repressão possui como que um ar de transgressão deliberada. Quem emprega essa linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura. (FOUCAULT, 2014, p. 11. Grifos nossos)" 

(Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento, in: "As Novas Cartas Portuguesas e a insurgência feminista em Portugal", Historiæ, Rio Grande, 7 (1): 9-28, 2016)

 2ª citação:

O aborto é um dos temas que denunciam a situação feminina no contexto da época


"E o erotismo, senhores, e o erotismo? Em quase todos os livros chamados eróticos que por hoje abundam, il n'y a pas de femmes libres, il y a des femmes livrées aux hommes. É essa a libertação que os homens nos oferecem, de repouso do guerreiro passamos a despojo de guerra. E morreu, por fazer um aborto com um pé de salsa, morreu de septicemia, a mulher-a-dias que limpava o escritório onde trabalho, e soube depois, pela sua colega, que era o seu vigésimo terceiro aborto. E contou-me, há anos, uma amiga minha, médica, que no banco do hospital eram tratadas com desprezo as mulheres que entravam com os seus úteros furados, rotos, escangalhados por tentativas de abortos caseiros, com agulhas de tricot, paus, talos de couves, tudo o que de penetrante e contundente estivesse à mão, e que lhes eram feitas raspagens do útero a frio, sem anestesia, e com gosto sádico, "para elas aprenderem". Aprenderem o quê, com um raio?"

 (Novas Cartas Portuguesas, p. 205)


3ª citação:

O voyeurismo do olhar feminino para o corpo do homem


"Ali estava o seu corpo adormecido, aninhado no seu descanso, tão quieto, tão presente na luz amarelada, definindo-se por seu peso e por aquele estar quieto, todo tomado de luz, sem contorno que separasse corpo e luz, (...) a pele dourada estendendo-se um pouco, no peito alto, de curva possante e com os seus mamilos quase rosados, e as costas movendo-se também com a mesma unida e certa ondulação da água mansa, as costas bem talhadas, estreitando-se do largo dos ombros até à anca com a rectidão da pedra talhada, mas de braço a braço a curva bombeada, alta e suave, que a meio se cava bruscamente como o leito dum rio, e movendo-se ainda o osso da anca, delicado, anguloso, saliente agora de sua habitual discrição no corpo que repousa de lado e se debruça, leve, cavando um pouco a cintura, escondendo o ventre e a densa doçura dos pêlos mornos, e um pouco o sexo, alteando o redondo - no entanto severo, cinzelado - das duas nádegas estreitas, aparecendo depois o sexo entre as duas pernas que se abrem, uma estendida sobre a cama e a outra levemente flectida, esvaindo-se a coxa da anca alteada até à cama, onde o joelho pousa, (...) e entre as coxas, renascendo da sombra do ventre escondido, e que se estende como savana cálida, que em si retém o amarelo da luz, na curva nascente das nádegas, nas coxas, nas pernas, entre as coxas o seu sexo, os dois pequenos pomos cuja firmeza se desenha na pele branda e a corola recolhida de seu pénis adormecido. (Novas Cartas Portuguesas, p.175)


4ª citação:

Em muitos momentos, aflora o ressentimento de Mariana para com o consentimento de sua mãe sobre o seu destino de clausura forçada, no convento:

Mensagem de invenção de Mariana Alcoforado:


Senhora mãe eu me sei
em vosso ventre 
gerada

gosto de gozo ou silêncio
vossas entranhas gastei
nelas entrando enganada

Ó sina de mágoa imensa
Ó meu labor recordado

Ó sua agonia intensa
Ó vosso parto adiado

medo tristeza e sustento
teu ombro de minha infância

Ausência que foi doendo
como uma pedra engastada
de anel em vosso dedo

Que filha posta em convento
não se quer em sua casa

Senhora mãe que te achaste
sem o saber
emprenhada

o ventre vendo crescer
sem te sentires 
habitada


5ª citação:

A colonização do corpo


"Quero-vos falar daquele homem que me disse durante uma longa tarde: "possuir-te só posso se vestida; de freira tu, se possível - acrescentou baixo desviando os olhos - , o hábito levantaria a enrolar-to nas pernas que me apareceriam virgens, despidas de pudor até às ancas, ao ventre desprotegido onde passearia demoradamente a língua. Possuir-te só posso vestida - disse ainda e cada vez mais baixo - é assim que te quero violentar, mulher sem defesa e objecto. Deixa-me ao menos que te tenha numa igreja!" 

                                                                                (Novas Cartas Portuguesas, p.77) 

"A guerra colonial ampliou seus domínios na colonização do corpo da mulher, em um processo de subordinação intencional e sistemático, propalado pelo discurso preponderante. As três Marias denunciam esse processo de "adestramento", consideram-no mesmo a fonte de todos os problemas sociais, apontando para a incapacidade da mulher de reagir a esse poder e a seu discurso, sentindo-se forçada a interiorizá-lo para conseguir sobreviver. A consciência social foi uma prática política feminista, a partir dos anos 70, dando visibilidade a outras formas de opressão, além do gênero: diferenças de classe social, racismo e homofobia estavam intimamente relacionados aos abusos do colonialismo. (...) Uma visão construída socialmente e assim constituída recai sobre o corpo da mulher de modo que ele será também visto e tido como propriedade e posse natural do homem. As práticas da guerra colonial projetam-se, nos níveis pessoal e doméstico, numa concepção igualmente colonizadora do corpo da mulher, seja no controle de seu tempo, seja na exploração de sua mão-de-obra no trabalho, seja no próprio usufruto de seu corpo para gerar filhos, fazer serviços domésticos ou dar prazer sexual."

(Luciana D'Ingiullo, in: Sororidade, escrita-cúmplice e autoria compartilhada em Novas Cartas Portuguesas. Dissertação de mestrado apresentada à FFLCH - USP, 2023, pp. 48-49)

Sororidade


"bell hooks define sororidade como solidariedade política entre mulheres, ultrapassando o reconhecimento positivo das suas experiências ou a compaixão compartilhada quando comungam um  sofrimento comum. Nesse pacto, a luta contra a injustiça patriarcal deve ser feita com comprometimento, porque só a solidariedade política poderá enfraquecer o sexismo, derrotando o patriarcado. Além disso, as mulheres individuais deveriam estar dispostas a abrir mão de seu poder de dominação e exploração de grupos subordinados: "Enquanto mulheres usarem poder de classe e de raça para dominar outras mulheres, a sororidade feminista não poderá existir por completo."(2020:36). Uma relação em que haja solidariedade política implica que todas as mulheres estejam incluídas, que nenhuma delas fique à margem e sem acesso aos direitos sociais, aos bens materiais e aos meios culturais." 

(Luciana D'Ingiullo, in: Sororidade, escrita-cúmplice e autoria compartilhada em Novas Cartas Portuguesas. Dissertação de mestrado apresentada à FFLCH - USP, 2023, pp. 16-17. Grifos nossos)


O anti-colonialismo, ao combater o modus operandi da cultura patriarcal, será a base para derivações do movimento feminista que hoje ganham mais visibilidade, como o a teoria queer e o ecofeminismo:

Teoria Queer:

As flutuações de papéis - levadas ao plano da sexualidade - podem supor as Novas Cartas Portuguesas na inscrição de uma literatura queerEssa teoria permite pensar a cultura com base numa visão não binária das identidades sexuais, mas a partir de suas ambiguidades, da multiplicidade e fuidez dessas identidades. Segundo a teoria queer, a identidade não é vista como essência (natural, imutável), mas uma  performatividade construída. 

Segundo Ana Luísa Amaral, "várias das propostas da teoria queer lhe podem ser aplicadas: a explosão de dicotomias, a defesa de uma miríade de identidades não fixas nem estáveis, antes em constante transformação, a própria questionação de pontos de referência tidos como seguros. É assim que na teoria queer as identidades surgem como "múltiplas ou pelo menos compostas por um número infinito de possibilidades em que as componentes da identidade ... se podem combinar de forma arbitrária [e] instável (...)." (citação de Maria Gabriela Moita, in: Discursos sobre a homossexualidade no contexto clínico. A homossexualidade de dois lados do espelho. Universidade do Porto, 2001. Grifos nossos).

A teoria queer nasceu, com Teresa de Laurentis (1991), "partindo da reflexão sobre a dificuldade de as mulheres falarem e se representarem dentro de um linguagem e de um aparelho conceptual criado pelos homens". 

(Ana Luísa Amaral, "Desconstruindo identidades: ler as Novas cartas portuguesas à luz da teoria queer". Disponível em https://ilc-cadernos.com/index.php/cadernos/article/view/58 )


Ecofeminismo descreve movimentos e filosofias que ligam o feminismo com a ecologia que começaram a se difundir a partir dos anos 1970. O ecofeminismo propõe um diálogo crítico ao modelo capitalista de desenvolvimento econômico e a busca por alternativas ao extrativismo, contrapondo a ação desvalorizadora que o patriarcado impõe sobre o meio ambiente e às mulheres, ao mesmo tempo em que critica o paradigma do progresso presente no socialismo real e as dicotomias internas dos partidos comunistas. O termo é creditado à escritora francesa Françoise d'Eaubonne em seu livro Le feminisme ou la Mort (1974).

"Vandana Shiva afirma que as mulheres têm uma conexão especial com o meio ambiente através de suas interações diárias e esta ligação tem sido ignorada. Ela diz que as mulheres em economias de subsistência que produzem "a riqueza em parceria com a natureza, tem sido especialistas em seu próprio direito sobre o conhecimento holístico e ecológico dos processos da natureza." No entanto, ela afirma que "estes modos alternativos de saber, que são orientados para os benefícios sociais e necessidades de sustento não são reconhecidos pelo paradigma reducionista capitalista, porque ele não consegue perceber a interdependência da natureza, ou a conexão da vida das mulheres, o trabalho e conhecimento com a criação de riqueza."


Voltando às 3 Marias:

De volta à década de 1970, o julgamento terminou por ser adiado, e a sentença veio alguns dias depois do 25 de Abril, tendo sido determinada a absolvição de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. O juiz Acácio Lopes Cardoso concluiu: “O livro não é pornográfico nem imoral. Pelo contrário: é obra de arte, de elevado nível na sequência de outros que as autoras já produziram”. Era a democracia chegando. Com ela, uma constituição que pela primeira vez instituía a igualdade de direitos de todos os cidadãos, sem distinção de sexo, raça e religião — e a compreensão de que a arte é o espaço da liberdade.


Todas as três viriam a ser autoras de vastas obras. Maria Isabel Barreno publicaria mais de vinte livros, entre os quais dez romances; Maria Teresa Horta, a única que permanece viva, tem em torno de quarenta, e Maria Velho da Costa, além de romances, escreveria poesia, contos, crônicas, peças de teatro e roteiros de cinema.

( Tatiana salem Levy: "A revolução das três Marias", Revista Quatro Cinco Um, fev. de 2024)

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Cenas de um casamento: Pequenos Burgueses, de Carlos de Oliveira

 "Se o romance quiser permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas auxilia na produção do engodo" (Adorno: "Posição do narrador no romance contemporâneo")


" O real não é representável, é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura." (IDEM)

Preocupação de Carlos de Oliveira: "Uma concepção cada vez mais ampla e criadora de realismo" (Gastão Cruz)

                                 (cena do filme O fantasma da liberdade, de Luis Buñuel, 1974)


Para compreender melhor o romance, clique aqui


PEQUENOS BURGUESES (1ªs edições) – 1948, p. 43.
“Medeiros que tinha agora a banca, entregou a carta ao espanhol. Pablo pensou, sem dar o mínimo sinal de arrelia: “Cabron! Um duque de paus! Bien puderas pregar-lo em la testa”. Tinha-se feito com quatro trunfos miúdos. “Ou talvez já no precises”. Puxou a cigarreira calmamente e pediu lume ao dr. Albertino. D. Álvaro continuava a ganhar”.
“Faltava naquela noite o Navarro dos porcos, marchante e ourives, que era a teta gêmea do espanhol. Com uma pequena diferença. Pablo perdia serenamente; o Navarro escoicenhava, como o Delegado estava a fazer naquele momento.
O dr. Albertino dizia a si mesmo que era preciso serenar. Tinha resolvido aplicar um golpe, mas só com os nervos no sítio podia fazê-lo. Depois de medir os prós e os contras, resolvera trapacear na última mesa, que era sempre a maior. Haviam instituído a norma de triplicar o passe nos derradeiros jogos de cada noite. Uma chance para os codilhados; ou um entalanço inda mais duro. Em todo o caso uma probabilidade.
Entrara já no dinheiro que tinha reservado para o presente de Cilinha. Era necessário revê-lo de qualquer forma; não podia apresentar-se na festa de mãos a abanar. Positivamente. Mas se fosse apanhado na batota? Um Delegado do procurador da República  surpreendido  em flagrante vigarice! Bonito serviço! É claro que podia alegar um engano, um erro, qualquer coisa do gênero. Bom: o essencial agora era saber acalmar-se. Tinha pelo seu lado, uma vantagem de monta: ninguém ali fazia batota, a não ser D. Álvaro, claro. E isso levava os outros a prenderem-se demais com a vigilância do fidalgo.
(...)
Ao fim da sessão, estava mais ou menos no dinheiro de Cilinha. Cá fora , quando se despedia dos companheiros, Pablo Florez bateu-lhe no ombro e disse naquela linguagem híbrida que o distinguia:
- Vamo-nos os dois, doutor. Yo preciso hablar-lhe.
Seguiram pela rua enluarada e deserta. A noite, cheia de estrelas, punha tudo claro como de dia. Ouviram ainda a charreta de D. Álvaro, lá para baixo, no caminho calcetado que levava à Fonterrada. Meia dúzia de passos adiante, Pablo disse secamente:
- Yo vi.
O delegado estremeceu:
- Viu o quê, Pablo?
- La trapaça.
E, sem transição, continuou:
- Usted reparte comigo. E nadie lo saberá.
O dr. Albertino quis negar:
-Não houve trapaça nenhuma...
A voz tremia-lhe um pouco. O espanhol tinha-o nas unhas. Sabia bem que era difícil provar a batota, mas não podia esquecer que as palavras de Pablo Florez o prejudicariam de uma maneira grave. O outro era pessoa antiga e considerada em Corgos. Foi, já sem energia, que repetiu:
- Nenhuma, Pablo.
No adianta, hombre. Yo vi.
O delegado puxou molemente a carteira, contou metade do dinheiro e passou-lhe, sem uma palavra. O espanhol despediu-se:
- Bueno, dr. Asi es mejor. Yo havia perdido mucho.
E, já de longe, prometeu ainda:
- No lo saberá nadie.
O dr. Albertino, parado a meio da rua, apenas pôde murmurar entre dentes:
- Cachorro!” (pp. 46-49)



PEQUENO BURGUESES (3ª edição)
El Medeiros tiene la banca. Faço-me com quatro trunfos bajos e peço una carta. El cabron me dá el duque de paus. Bien puderas pregá-lo em la testa. Talvez já no precises. Merda, mierda, merda. Estes tipos me julgam impasible. Pablo Florez pierde sin pestanejar. Por amor de Diós, de Déus, de Deus, quien pensan ustedes que soy eu? Um Buda, um tipo de metal com niervos de acero? Faço el posible e el imposible por parecerlo. Verdad. Es uma buena, bona, boa máscara para el resto, las mujeres, los negócios, pero cansa. El duque de paus.  No tienes una cartita mas desgraciada, hijo de la puta, para este hombre de hierro que pierde como se no fuera nada com ele?
Uma cartita sin ninguna, nenhuma pinta, uma cartita blanca, que es lo que a Pablo Florez le gusta mais para dar la idéia perfeita de uma estatua de piedra? E ahora, agora, calma. Estes desabafos interiores son la descompressión necessária, pero no los deixes transparecer. Eso. Indiferente, los ojos quietos como dos lagos helados, los comparou assim certa noche de verão, verão? Se dice verão?, una chica, se dice chica?, se dice dice? Bien, dos lagos helados, pero hás-de lhorar mucho em tu vida, la nieve se fundirá em lágrimas, passión, amor, acrescentou la cigana, e serás de nuestra raza outra vez. Yo lo soy por dentro e eso precisamente me levou a esta máscara sem emoção, a este autodomínio, bravo, me ocorre agora mejor, melor, melhor el português, a este rosto talhado na vieja madera de la experiência.
Também o delegado aconselha calma a si mesmo. Pensa aplicar um golpe, que remédio, para salvar o dinheiro da prenda de Cilinha. Mede os prós e contras, desgasta-se, fuma desalmadamente.
 (...) Ao fim da sessão, o Delegado está mais ou menos no dinheiro de Rosário. (...) Cá fora, à despedida, Pablo Florez bate-lhe no ombro:
- Yo vi.                                                                                
- Viu o quê?
- La trapaça.
- Que trapaça?
- Vi, es quanto basta. Pero usted reparte comigo e nadie lo saberá.
- Pablo, sou um tipo de bem.
- Metade para usted, metade para mi.
- Isto é um roubo.
- Quien rouba a ladrón...
- Metade?
- Metade.
- Pablo...
- Asi es mejor. Yo habia perdido mucho. Grácias.
- Pablo, nadie lo saberá? Desculpe, ninguém saberá?
- Ninguém.
E afasta-se, murmurando entre dentes:
- Chiça. No sou de hierro, ni de piedra”.




























                                                                                                             
Vejamos a posição do narrador para descrever a cena de linchamento que os pequenos burgueses agenciam:

"O sangue escorre-lhe pelos olhos, deve deixá-lo cego. Toca a
andar. Cai, ergue-se, e volta a cair, vezes sem conto. Depois, as pauladas, os murros, deixam de lhe doer. Pelo menos parece. Já não se defende. Sente apenas medo, tanto, que se mija pelas pernas abaixo. Assassino. Ladrão. (...) Aguilhoam-lhe como se faz aos bois, levamtam-no a pontapé." 


Poemas de Carlos de Oliveira

Sobre o lado esquerdo
De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma : partem -se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.

No segundo caso, o homem que não dorme pensa:"o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim,deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo,esmagar o coração." 


(Carlos de Oliveira, in Sobre o Lado Esquerdo)


Soneto da Chuva
Quantas vezes chorou no teu regaço 
a minha infância, terra que eu pisei: 
aqueles versos de água onde os direi, 
cansado como vou do teu cansaço? 
Virá abril de novo, até a tua 
memória se fartar das mesmas flores 
numa última órbita em que fores 
carregada de cinza como a lua. 
Porque bebes as dores que me são dadas, 
desfeito é já no vosso próprio frio 
meu coração, visões abandonadas. 
Deixem chover as lágrimas que eu crio: 
menos que chuva e lama nas estradas 
és tu, poesia, meu amargo rio. 

(Carlos de Oliveira, in 'Terra de Harmonia')


Infância
Sonhos 
enormes como cedros 
que é preciso 
trazer de longe 
aos ombros 
para achar 
no inverno da memória 
este rumor 
de lume: 
o teu perfume, 
lenha 
da melancolia. 

(Carlos de Oliveira, in 'Cantata')

Dentes
Os dentes, porque são dentes, 
iniciais. Na espuma, 
porque não são saliva 
estas ondas 
pouco mordentes; este 
sal que sobe quase 
doce; donde? 
Numa espécie 
de fogo: amor é fogo 
que arde sem se ver; 
porque não é 
de facto fogo este frio aceso; 
da saliva à lava 
passa pela espuma. 
Só os dentes. 
Duros, ácidos, concentram-se 
tacteando a pele, 
tatuando signos sempre 
moventes 
de fúria. Mordida 
a pele cintila; espelho 
dos dentes, do seu esmalte voraz; 
suavemente. 

(Carlos de Oliveira, in 'Pastoral')


Leitura
Quando por fim as árvores 
se tornam luminosas; e ardem 
por dentro pressentindo; 
folha a folha; as chamas 
ávidas de frio: 
nimbos e cúmulos coroam 
a tarde, o horizonte, 
com a sua auréola incandescente 
de gás sobre os rebanhos. 
Assim se movem 
as nuvens comovidas 
no anoitecer 
dos grandes textos clássicos. 
Perdem mais densidade; 
ascendem na pálida aleluia 
de que fulgor ainda? 
e são agora 
cumes de colinas rarefeitas 
policopiando à pressa 
a demora das outras 
feita de peso e sombra. 

(Carlos de Oliveira, in 'Pastoral')

Alteridade em Duas Pessoas

Duas Pessoas Eu digo: o teu cabelo. Ela está agachada junto à cama, procurando um sapato que se extraviou. Ergue a cabeça, de lado, e os olh...