quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Alteridade em Duas Pessoas


Duas Pessoas


Eu digo: o teu cabelo. Ela está agachada junto à cama, procurando um sapato que se extraviou. Ergue a cabeça, de lado, e os olhos lentos e confusos parecem indagar desamparadamente. Estas pequenas prostitutas ficam diante de mim desprovidas quase de qualidades humanas. Possuem o corpo, máquina de algum talento, enquanto a minha solidão continuamente se exerce e cria uma zona intensa, extrema, atravessada por outras presenças, estranhas criaturas calorosas que aparecem e desaparecem, que se substituem, sem atingirem nunca uma forma definitiva. Criaturas incertas, mas verdadeiras. Expressões de uma nebulosa aspiração. Que alcançariam as palavras num dia suposto. Ou me tocariam à noite, ao pé de uma lâmpada íntima, e deste modo provocariam em mim, pela memória, densas associações, frêmitos, o sentimento da alegria ou da proximidade da morte. O meu cabelo? – pergunta ela. Está ainda nua. Os joelhos, os seios, os ombros, os sombrios olhos atônitos – são realmente belos. E eu sorrio como se me desculpasse. Devo dizer: não sou puro. Talvez deva dizer: quando murmurei essa frase que se poderia confundir com um apelo ou um repentino e insustentável movimento da emoção (“o teu cabelo”), não pensava, não sentia nada. Eis a verdade: sou uma criatura devastada pelo egoísmo. É melhor para com tais explicações. Aluguei esta casa quando vim do estrangeiro. Sentia-me transbordar de experiências desordenadas e irrevogáveis. Um pouco enjoado de pequenas cidades descobertas à noite, quando se sai numa estação de caminho de ferro. Farto de gentes, costumes, acontecimentos. Viajar é idiota. Bom para a crassa primeira juventude. Também para os homens de negócios e os intelectuais que vão escrever livros de viagens ou fazer conferências ou estabelecer, no equívoco plano das literaturas, as fraternidades inter-nacionais. Regressei farto, farto, um milhão de vezes farto. Aluguei a casa, comprei livros e discos, uma cama, pouco mais. Gosto dos lugares ascéticos. Sou uma pessoa esquisita. Deito-me e ponho-me a fumar e a ouvir discos. Ouço Bach. Gostaria de ter um cravo e tocar. Fumo muito. Faz-me mal. Abro um livro e leio duas ou três páginas. Às vezes trago uma prostituta para casa e tento que ela beba comigo meia garrafa de brandy. Mas não sei conversar, e ela sente-se constrangida, lesada. Então digo qualquer coisa: o teu cabelo, por exemplo. E a rapariga não compreende. Há ocasiões em que as prostitutas imaginam tratar-se de um cumprimento, e sorriem. Sorriso vacilante, que se não sabe se crescerá, apossando-se do rosto todo, da pessoa toda, ou se então será reabsorvido em si mesmo. Estaria porventura no meu poder fazê-lo aumentar até a emoção, à gratidão. Mas fico-me por aí. Acendo mais um cigarro. Ela tenta: o meu cabelo? Não percebe, ou espera que eu faça surgir, dentre a massa de humilhação e marginalidade da sua vida, essa trêmula, velos alegria. Eu que sou um homem, que possuo a ambígua faculdade da doçura viril, e posso exibir a comoção perante a beleza, mesmo a fortuita e frágil beleza humana. Mas estaco. Sou cruel? Ou frio. Para o caso tanto faz. Digo: queres um cigarro? Ela abana negativamente a cabeça. E o tal cabelo mexe-se de cá pra lá sob a luz, escorrega por cima dos ombros. Ela passa as mãos devagar, as mãos espalmadas, sobre o tal cabelo que brilha sombriamente na luz. Levanta-se, nua, com o tal cabelo muito caído pelas costas, pelos ombros, e o sapato – enfim encontrado – na ponta dos dedos. O sapato destrói a mão direita, ah! destrói-a irrecuperavelmente, e só a mão esquerda permanece com alguma dignidade, tombada junto à perna, inútil, despertando-me uma qualquer idéia excessivamente brumosa, que eu agora procuro tornar mais real, dizendo: a tua mão. Mas ela confunde e ergue a mão direita com o sapato um pouco sujo, a verem-se lhe as palmilhas escurecidas. Poderia eu amar esse sapato, quer dizer: essa mão caminhando ao encontro de uma possível emoção, de um estremecimento subtil que abrisse por fim a veemente máquina interior e nos fizesse a nós dois, a jovem prostituta humilhada e o homem gasto, a benignidade de breve mas verdadeiramente humana conciliação? Fico deitado tardes inteiras, fumando interminavelmente. Bach. Cinco páginas de Hamlet, 2º ato, 2ª cena. A ficção da loucura por parte de Hamlet é dúbia. Polônio por seu lado submete-se às regras do perigosíssimo jogo. Nesta atmosfera nem a ficção da loucura é gratuita, nem a lucidez casual. Mas eis toda a verdade no espaço rápido e fechado. As leis do fingimento são secretas, intraduzíveis. Perfeito. Nelas reside o segredo total. Quarto do castelo de Elsenor. A ficção (ou fingimento) é o único caminho para a verdade? – Que ledes, meu senhor? – Palavras! Palavras! Palavras! – Mas de que se trata, meu senhor? – Entre quem? E Bach ao fundo. Concerto Brandeburguês n.º5 pela Orquestra de Estugarda. Transferi tudo. Eis como funcionam estas minhas admiráveis virtudes humanas. E a pobre rapariga levanta-se, depois de recusar o cigarro, e aproxima-se com o seu desgraçado sorriso, vulnerável assim entre a última humilhação e uma espécie de momentânea ressurreição do valor da vida e da pessoa. Tudo isso à minha frente, entre os belos sons de cravo de Bach e as palavras de uma trágica e tão significativa comicidade de Shakespeare. Entre quem? Ora aí está: deveria ser entre mim e ela, e não palavras, palavras, palavras – mas um grande assunto. O assunto de um empenhamento, uma devoção humana. Não gosto de ninguém, mas pergunto: não tenho eu obscuras, calorosas e ricas faculdades? Ela avança para dar-me um beijo. Recebo-o na boca e – fácil! – retribuo. Enoja-me a saliva que me fica nos lábios, e confundo-a depressa com a minha, passando a língua por cima. Pois eu tenho muita saliva, muita abjeção onde afundar a abjeção dos outros. Estou deitado e, pela cidade adiante, caminha a prostitutazinha. Embrulhada no seu casaco, atravessa as ruas, pelas sombras, pelas luzes, debaixo de árvores e prédios enormes. Vem, vem. Bate-me à porta. Eu poderia gritar, fazendo calar o disco e atirando para o lado o meu livro: chega alguém! Ela entra, etc., etc. Quero poupar-me à ignara massa de palavras que descreveriam a sutileza de quantos movimentos, o fulgor de quantas revelações, o ondulante espetáculo do nascimento e ação de um corpo. Passo-lhe a ponta dos dedos pelo rosto. Não são as rugas ou a gordura de um rosto, qualquer falha, o que me repugna. Detesto em bloco a incapacidade humana em atingir a pureza ou a intensidade criada pela solidão. Será isso? Ou serei eu uma criatura estéril, sem dons, sem expansão? Que oportunidades! Ela está agachada, procurando esse perdido sapato providencial; curvada, curvada como um ser indefeso, oferecido a maravilhosas capacidades minhas. Eu aproximar-me-ia e a minha mão correria ao longo do seu cabelo, tocaria no ombro, tomaria sua mão. E ela elevava então para mim os grandes olhos onde o terror se diluía, os olhos que recebiam e devolviam uma luz maior. Eu poderia dizer: o teu cabelo. Ou: a tua mão. Ou ainda: tu. Antes disso, que posso saber, embora aconteça aquilo a que tão imprópria e ingloriamente se chama intimidade? Uma casa ascética depois de um fácil tumulto móvel, Shakespeare e Bach após lugares e tempos improfícuos. Tudo uma visão desbaratada pelo caráter básico da renúncia ao ardor, à esperança, à alegria. A mulher diz: o meu cabelo? Eu acendo um cigarro e pergunto: queres um cigarro? E enquanto ela se levanta para alguma coisa porventura definitiva, guardada no tesouro dos séculos, eu afasto-me e, acercando-me da janela, passo a mão pelos vidros embaciados, olho a rua e murmuro: deixou de chover.




Este senhor taciturno que me recebe com uma fria gentileza parece ter viajado muito. Agora vive na nossa cidade – que não sei se é também a dele – numa casa quase sem móveis que me faz sentir gelada, mais gelada ainda depois de atravessar as ruas escuras e nevoentas. Ele paga-me bem, este senhor, e por isso venho muitas vezes. Está sempre só, bebendo e ouvindo discos intermináveis. A casa está cheia de fumo. É horrível. Mas pergunto: será apenas por me pagar bem que volto sempre? Bato de leve à porta, e ouço o disco parar bruscamente ou descer para um sussurro. Os passos deslocam-se pelo corredor, a porta abre-se muito devagar. E cá está a cara dele – feia, triste – e os olhos fixos. Sorri incrivelmente – assim como quem vai pedir desculpa, e depois fica de súbito muito sério. Estou farta dos homens, quase nunca tenho prazer em ir para a cama com eles. Porque é tão degradante a insolência dos jovens como a devassidão dos velhos. Sinto-me muito só junto deles, acho-os absurdos com o seu sofrimento mal oculto atrás de uma simulada virilidade. Há neles uma solidão igual à minha, tão premente como ela, mas a que a fatuidade tira qualquer nobreza. Os homens imaginam, suponho, que me sinto humilhada na minha profissão e que existem em mim, sempre prontos, um apelo, uma súplica. Mas não. Estou só, apenas isso, e muita gente já tenho eu ouvido dizer o mesmo. Às vezes ele toca-me no rosto com muita atenção e vejo que há por detrás dos seus gestos, do silêncio, um ardor exasperado mas impaciente ou envergonhado de si. É um homem que eu deveria socorrer. Tento mostrar-lhe que há algures, nas nossas possibilidades humanas, uma zona onde a vida se regenera. Eu própria gostaria de ser mais alegre e generosa, mas hesito nos meus impulsos. Existe nos homens essa insuportável fatuidade, um orgulho estúpido e, lá no fundo, uma espécie de condição própria: inalcançável, repugnante. Decerto: é misericórdia o que desperta em mim, ou o desejo talvez de abrir nele um caminho tenazmente vedado. Digo-lhe: os seus olhos. Mas arrependo-me. E ele olha para mim aterrorizado. Depois fecha-se. Oferece-me de beber e recuso quase sempre. E então murmura palavras indefinidas, embaraçadas: a tua mão, a outra, a mão livre. Sim, vai pedir-me que fique, e o afague, sei lá, talvez que morra com ele, tomando os dois um tubo de comprimidos. É homem para isso.Cheira a desespero a quilômetros de distância. Mas volta-se para a janela enquanto me visto, e então só penso em desaparecer, abandonar esta criatura atacada pela lepra, este homem que porventura eu salvaria, se houvesse em mim mais força e determinação ou mais doçura ou uma piedade maior. Porque é um ser minado, destruído. Ainda vivo apenas para pedir socorro. Vou junto dele, toco-lhe no braço, beijo-o na boca. Um momento apodera-se de mim: salvá-lo, salvá-lo! Mas eu própria estou cansada, farta das pessoas, os falsos enigmas, as noites em que entro e saio da cama de homens desesperados. Mas este homem perturba-me. Poderia amá-lo, erguê-lo da sua dolorosa confusão, colocá-lo numa dignidade de que, é evidente, perdeu o sentido. Agita-se de um lado para outro com as grandes mãos batendo contra as pernas, magro e cheio de uma fome terrível. Fome desta mulher que chega cheirando à cidade noturna. Eu poderia entrar, agarrar-me a ele, dizer-lhe assim: aqui estou. Ele é ridículo, ridículo. Com a sua música, os olhos falsamente frios, o seu resguardo mudo. Uma parte de mim mesma resiste, a parte mais clara e isenta, a mais implacável, mas também porventura a mais justa. É um inimigo. Estes homens esbulham-nos. Exploram a fonte maternal de que somos dotadas, ficam ali sugando o nosso leite, e deixam-nos completamente vazias. Raça de exploradores. Mergulham a cabeça entre os nossos seios brancos e somos obrigadas a acariciá-los em silêncio, enquanto de olhos cerrados, através de uma suntuosa orgia de recordações e contradições, compõem a sua paz interior, enquanto se recuperam, eles, deixando-nos exaustas. Então dizem: os teus seios. Ou: o teu cabelo. Miserável. Mas estremeço. Cegueira maternal, furiosa força de doçura que me empurra para o homem, para a sua perpétua e louca orfandade. Eu poderia fechar os olhos, avançar por esses equívocos terrenos, chegar lá, chegar lá. E esse espírito abria-se, reorganizava-se – o espírito do último homem. Queres um cigarro? – pergunta ele. Aceito. Acende-mo com gentileza, embora se pudesse esperar, devido a toda essa tensão, que simplesmente me atirasse o maço de cigarros e a caixa de fósforos. Pretende ser distantemente gentil, mas a mão treme-lhe quando me estende os cigarros. Quer dar-se, dar-se para lá de qualquer expressão inóspita, da teoria masculina da força e do poder. E então ocupo-me do meu corpo. Penteio-me, calço as meias, ponho batom. O homem folheia um livro. Coloca um disco no pick-up. E quando se vira, talvez para dizer: por favor, fica – eu levanto a cabeça e pergunto: já deixou de chover?

Herberto Helder, in: Os Passos emVolta, 1963


 

Capa da 6ª Edição


"Chamo de dobrar-se-em-si-mesmo o retrair-se do homem diante da aceitação, na essência do seu ser, de uma outra pessoa na sua singularidade, singularidade que não pode absolutamente ser inscrita no círculo do próprio ser e que contudo toca e emociona substancialmente a nossa alma, mas que de forma alguma se lhe torna imanente; denomino o dobrar-se-em-si-mesmo a admissão da existência do Outro somente sob a forma da vivência própria, somente como “uma parte do meu eu”. O diálogo torna-se aí uma ilusão, o relacionamento misterioso entre mundo humano e mundo humano torna-se apenas um jogo e, na rejeição do real que nos confronta, inicia-se a desintegração da essência de toda realidade."

(BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo, Editora Perspectiva, 1982)


Excertos para discussão:


"A nudez, oposta ao estado normal, tem certamente o sentido de uma negação. A mulher nua está próxima do momento da fusão, que ela anuncia. Mas o objeto que ela é, ainda que o signo de seu contrário, da negação do objeto, é ainda um objeto. É a nudez de um ser definido, mesmo se essa nudez anuncia o instante em que seu orgulho passará ao indistinto da convulsão erótica. Em primeiro lugar, é a beleza possível e o charme individual dessa nudez que se revelam. É, numa palavra, a diferença objetiva, o valor de um objeto comparável a outros."

 (BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. de Claudia Fares. São Paulo, ARX, 2004, p.25)



"Toda a atividade do erotismo tem por fim atingir o ser no mais íntimo, no ponto onde ficamos sem forças. (...) Toda a realização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que, no estado normal, é um parceiro do jogo. A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, quer dizer, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser além do retrair-se em si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade por intermédio desses condutos secretos que nos provocam o sentimento de obscenidade." 

(BATAILLE, 2004, pp.28-29)




Contrapontos: 
Para pensar este conto, leia-se:  

1.Um poema do próprio Herberto Helder



O amor em visita

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. 
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei. 

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte. 

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte. 

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva. 

- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura. 

Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe
a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos. 

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua. 

Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes. 

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue. 

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo. 

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras. 

Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo. 

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

                                             Herberto Helder

2. O conto "A Idade das Mãos", de José Luís Peixoto

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